Lá vai o monstrengo tributário descendo a ladeira
‘A reforma tributária aprovada pelo Congresso é um tiro no escuro, uma aventura perigosa. Já podíamos ter aprendido que, em democracias consolidadas, as reformas devem ser incrementais’
Luiz Inácio Lula da Silva não entendeu em sua plenitude a reforma tributária que está bancando. Suas consequências estão concentradas no longínquo 2033. A parte que começa logo deve funcionar, a da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), mas, no que se refere ao IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), construiu-se um monstrengo.
O avanço do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 68/2024 é o capítulo mais recente da novela da reforma tributária do consumo. O PLP dá início ao processo de regulamentação do novo sistema tributário instalado pela Emenda Constitucional (EC) nº 132/2023 para engordar o recheio de exceções desse amargo rocambole.
O texto final da Câmara também é um atentado contra a matemática elementar, porque, a título de compensação para as exceções e especificidades criadas, fabrica uma trava para a alíquota geral do imposto. Não há como evitar a comparação dessa patuscada com a ideia de fixar a taxa de juros real em 12%, conforme texto original da Constituição de 1988 (só modificado pela EC nº 40, 15 anos depois).
É uma ideia simples para um problema complexo e totalmente equivocada.
Mais ou menos assim: “se a alíquota é alta, vamos limitá-la”. Gênios. Papel aceita tudo, não é mesmo? Ocorre que, se as exceções se avolumam, não há como garantir a mesma arrecadação para todos — estados, municípios e União — sem uma alíquota geral mais alta. Ou, de repente, descobriu-se como resolver um sistema de equação com 50 incógnitas e 3 equações?
Quem sabe tenham descoberto espécie de maná divino ou moto perpétuo, em que o dinheiro cai do céu por meio de, digamos, um “split payment” bem-acabado, diretamente para os Tesouros Estaduais e Municipais.
A propósito, o tal modelo de “split payment” (sistema para arrecadar e, depois, devolver crédito tributário de modo automático) é vendido como tábua de salvação para as complexidades do novo regime. Que capacidade de plantar jabuticaba sem açúcar! No lugar de nos contentarmos com a original, tão saborosa, optamos pelas sandices.
O efetivo pagamento, quando da realização da operação de compra e venda de um produto, insumo ou serviço, teria o condão de disparar milhares de comandos automáticos, vejam vocês. O objetivo: garantir o cálculo preciso do crédito tributário e devolver dinheiro aos contribuintes intermediários.
Ocorre que lugar algum do mundo possui sistema similar com tal proporção e dimensão. As chances de um piripaque, uma bateção de pinos, logo de saída, é tremendamente alta. Mas é uma questão de fé, caros leitores e leitoras: acreditem, o “split payment” vai garantir a boa arrecadação, o combate à fraude, a devolução de créditos, a redução da carga tributária, o crescimento econômico turbinado e o que mais vocês quiserem.
É só pedir. Entra fácil no texto das regulamentações, feito a isenção geral e irrestrita para a carne, torradeira de dinheiro público sem beneficiar os mais pobres. O dinheiro vai para o bolso do setor, que está sorrindo de orelha a orelha após a vitória na Câmara dos Deputados.
O famigerado algoritmo do Comitê Gestor, uma entidade para todos governar, não é conhecido. Aliás, o Comitê Gestor, estrutura mais poderosa do que qualquer governo de estado ou mesmo a Receita Federal, ficou para depois. Discutiram a ferro e a fogo as exceções, as minúcias dos itens de horticultura, nas exceções, e dos planos de saúde para gato e cachorro, mas o elefante… Ah, este passeia no meio da sala de estar e ninguém toma conhecimento.
O algoritmo do Comitê Gestor é como a roupa nova do imperador: não existe. Vendem para a sociedade que o tecido é feito de fio especial, em tecelagem magnífica, sob os olhares e cuidados dos mais geniais tecelões. Só que não é dado a todos o dom de enxergar a beleza e perfeição das vestes do rei. Na verdade, não tem fio, não tem tecelão, não tem coisa alguma.
O rei está nu.
Quem quer provar o oposto deve apresentar, com clareza, a estrutura, a governança, o funcionamento, as regras, o regulamento, o escopo de atuação etc. do Comitê Gestor. É que não têm ideia de como colocar isso de pé sem acabar com a Federação.
A reforma tributária aprovada pelo Congresso é um tiro no escuro, uma aventura perigosa. Já podíamos ter aprendido que, em democracias consolidadas, as reformas devem ser incrementais. Não se dá cavalo de pau em temas centrais como o tributário.
Estamos jogando tudo fora para reerguer a oitava maravilha do mundo ou um verdadeiro monstrengo tributário, como venho alertando há tempos?
No lugar de aprimorar o regime de créditos e débitos do ICMS e promover mudanças operacionais e legais para garantir a adequada devolução dos créditos acumulados (estes, por sua vez, gerados por hipóteses da legislação, como a não oneração das exportações), avançamos para um mundo obscuro de sistemas malucos que só existem na imaginação fértil dos donos e apoiadores desta reforma.
A CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), sou capaz de vaticinar, não é o problema. Vai funcionar, porque a Receita Federal tem expertise, entende do riscado e não vai deixar a peteca cair. É antiga, afinal de contas, a ideia de unificar as legislações do PIS/PASEP e da COFINS.
O problema está, principalmente, no IBS (Imposto sobre Bens e Serviços). Como se cria um imposto subnacional, gerenciado por quem não tem voto e comandado por 54 iluminados sem estrutura, sem servidores, sem gente com capacidade para fiscalizar e garantir a saúde financeira do Erário?
A Professora Misabel Derzi falou muito bem, no XII Fórum de Lisboa, há algumas semanas, ao demonstrar que o Comitê Gestor é inconstitucional, porque fere o pacto federativo. Mas, isso é mero detalhe para quem segue viajando na maionese do “split payment”, enquanto se aprovam exceções, isenções e puxadinhos para os amigos do rei.
É preciso ter claro: o IBS e a CBS, juntos, deveriam compor um IVA (Imposto sobre Valor Adicionado) com alíquota de 26,5%, segundo a Secretaria Especial da Reforma Tributária. Cabe perguntar: se o cálculo era de 26,5%, antes, como pode, agora, continuar sendo o mesmo? Que matemática é essa, caros colegas?
E, se não tem risco de subir, por que a trava? Aliás, o mecanismo da trava (limite máximo para a alíquota do IBS mais CBS) é assim: se se perceber que a alíquota superará os 26,5%, então as isenções e benesses aprovadas nos últimos dias no PLP nº 68/2024 seriam revistas, por meio de uma nova proposta de lei complementar. É uma brincadeira? Não. É a reforma tributária que, para seus idealizadores, é a última bolacha do pacotinho. A alíquota vai ser muito mais alta, na casa de 33%, para dar conta de toda essa estrambólica e disparatada reforma tributária.
Apertem os cintos, contribuintes, vocês vão pagar essa conta. E lá vai o monstrengo. Ele é bom de descer ladeira.
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Fonte: UOL Economia / Foto: Divulgação