Brasil gasta muito e não consegue manter as rodovias

Buracos no asfalto, erosão no leito das pistas e quedas frequentes de barreiras são alguns dos problemas facilmente constatados em estradas de todo o País. Os caminhos são perigosos, acidentados. A baixa qualidade da matéria-prima usada nas milionárias obras de recuperação e a falta de conservação são quase marcas registradas das estradas brasileiras. Apesar de a Lei de Licitações determinar tempo médio de vida útil de dez anos após as reforma, grande parte das rodovias federais e estaduais volta a ficar esburacada e a oferecer perigo aos motoristas muito antes de vencido esse prazo.
Inúmeros também são os casos de estradas com trechos comprometidos por buracos, ondulações e trilhas no leito da pista pouco tempo após a pavimentação ser realizada. No Rio Grande do Sul, o piso de parte da BR-101, inaugurado pelo presidente Lula há pouco mais de um ano, já preocupa. O trecho Sul da via sofre com a presença de ondulações e buracos prematuros. “Estrada é que nem planta. A manutenção deve ser periódica e rotineira após a inauguração, caso contrário um pequeno buraco vai evoluindo e a via se deteriora rapidamente”, alerta João Albano, professor de Engenharia Civil e integrante do Laboratório de Sistemas de Transportes (Lastran) da Ufrgs.
 
Mas o estado crítico de algumas vias não é exclusividade gaúcha. Ao contrário, os casos de deterioração se multiplicam pelo território nacional. A BR-474, em Minas Gerais, por exemplo, foi contemplada com obras de pavimentação há três anos, mas já precisa de recuperação. Buracos e risco permanente de quedas de barreiras marcam os 160 quilômetros de extensão da rodovia. Na avaliação feita pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT) divulgada no fim do ano passado, ela é classificada como ruim.
 
Em 2009, a BR-474 foi dividida em três trechos, sendo dois pavimentados. Interrompidas, as obras do terceiro trecho deverão ser retomadas este ano. No entanto, além de concluir o projeto, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) terá de desembolsar recursos para a recuperação da extensão já asfaltada. A obra total foi orçada em R$ 53 milhões, sendo R$ 42 milhões em verbas federais e o restante, estadual.
 
Problemas estruturais comprometem também a malha estadual de diversos estados. No Rio de Janeiro, a rodovia RJ-117, que liga Paty do Alferes a Petrópolis, na região Serrana, não durou nem dois anos. Inaugurada em junho de 2010, a estrada tem rachaduras no asfalto na localidade de Vale das Videiras, deixando a rodovia em meia pista. As chuvas de verão ainda provocaram quedas de barreira em praticamente toda a extensão da via. Os deslizamentos cobriram de barro o asfalto, e a cada chuva forte a terra vira um atoleiro. As obras custaram R$ 31 milhões. O Departamento de Estradas de Rodagem (DER-RJ) informou que vai recuperar a estrada após o período de chuvas.
 
Em Roraima, a BR-174 é outra dor de cabeça para os motoristas. Recuperada em 2010, ela apresenta centenas de buracos que dificultam a passagem até de veículos pesados como caminhões e ônibus. Já no Rio Grande do Norte, foram empregados R$ 167 milhões em obras em estradas federais em 2009 e 2010. Mas rodovias como a BR-405, no estado, são classificadas em situação ruins pela pesquisa da CNT. “O tempo de vida útil não é alcançado porque há projetos ruins, execução errada e material de baixa qualidade comprado como se fosse de primeira. E, o que é pior, as fraudes se multiplicam por falta de fiscalização”, critica o professor da Universidade de Brasília e especialista em obras de pavimentação, Deckran Berberian.
 
Para a CNT, 38% das vias gaúchas estão em más condições – O Estado possui aproximadamente 13 mil quilômetros de estadas estaduais e federais pavimentadas, 38% deles em más condições segundo a avaliação feita pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT) em novembro de 2011. O índice é o menor entre os estados da região Sul, mas mesmo assim escancara problemas comuns nas vias gaúchas como a precariedade do piso, a sinalização deficitária e a geometria carente. “Já estivemos pior, mas ter quase 40% das rodovias deficientes é muito ruim. Deixamos a desejar em várias questões”, pontua o professor João Albano.
 
Entre as estradas mais precárias está a BR-101 Sul, no trecho ligando Capivari do Sul a Mostardas, antigamente conhecida como Estrada do Inferno. No local, o estado do pavimento é classificado como “horroroso” por Albano. As RSC-453 (liga Venâncio Aires a São Francisco de Paula), RS-324 (une Bento Gonçalves e Passo Fundo) e RS-118 (conecta Sapucaia do Sul e Viamão) também entram no rol das piores vias. “Elas têm problemas de toda a ordem, mas principalmente buracos no pavimento, o que é grave. Se a superfície de rolamento está ruim não adianta nada ter uma drenagem maravilhosa”, exemplifica Albano. Entre as rodovias consideradas boas pela CNT estão a BR-290, BR-116 e a freeway.
 
Segundo Albano, as causas para a má conservação de determinadas rodovias passam por uma série de fatores: projetos deficitários, a falta de investimento em manutenção e a pouca fiscalização durante a construção. “As nossas pavimentações estão ocorrendo sem grandes cuidados com a qualidade porque muitas vezes há a preocupação com os prazos de inauguração. Se a obra é feita de qualquer jeito, consequentemente ela não vai ter a durabilidade esperada”, constata Albano. A esse cenário, soma-se o aumento da frota do Estado, que passa dos 5 milhões de veículos. Isso faz com que os novos projetos tenham de se adequar à nova realidade. Albano lembra que esse tipo de planejamento praticamente inexiste atualmente. Nesse sentido, adequar as rodovias a esse cenário é um dos principais desafios. Além disso, Albano defende fiscalização quanto ao transporte de cargas, pois o excesso de peso nos caminhões também contribui para a deterioração das pistas.
 
Dnit estima que restauração das vias vai exigir investimento de R$ 16 bilhões – Neste ano, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) prevê a restauração de 32 mil quilômetros de vias federais e de 1,5 mil pontes, a partir do investimento de R$ 16 bilhões. Os recursos também serão usados em operações tapa-buracos para garantir o mínimo de condições de tráfego. Porém, o programa de recuperação já derrapa em problemas. O Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que o Dnit faça correções em processos de licitação e contratos de manutenção, após verificar a existência de projetos deficientes ou desatualizados.
 
Apesar de o órgão sinalizar a intenção em destinar verbas, o diretor-executivo da Confederação Nacional de Transportes (CNT), Bruno Batista, acredita que o Brasil ainda investe pouco para manter em bom estado suas estradas. Segundo ele, parte dos recursos que deveriam ser alocados na construção de novas rodovias acaba em serviços emergenciais que antecedem a restauração das vias. Atualmente, o Brasil gasta mais com os prejuízos provocados pelas estradas ruins do que com a ampliação e modernização da malha rodoviária federal.
 
Para justificar sua afirmação, Batista usa os números de acidentes registrados em estradas federais em 2010 — as estatísticas do ano passado ainda não foram concluídas. No total, foram 183 mil ocorrências e 8.516 mortos. “O governo gastou, em 2010, R$ 14 bilhões para cobrir os custos com os prejuízos causados pelos acidentes, grande parte motivada pelas péssimas condições das rodovias. Naquele ano, foram investidos R$ 9,8 bilhões nas estradas. Hoje se constrói muito pouco, e não se faz trabalho preventivo. Fazer reparos é o tipo da intervenção cara e de menor durabilidade”, admite Batista. O dirigente ainda lembra que a frota brasileira de veículos ganhou 13 milhões de veículos entre 2008 e 2011, três milhões deles apenas durante o ano passado.
 
O professor da Universidade de Brasília (UnB) e engenheiro civil Deckran Berberian enfatiza que a baixa qualidade das obras sustenta a indústria da recuperação. “É feito para não durar”, critica ele. Para a especialista em Controle da Regulação de Serviços Públicos Liliane Colares, o baixo tempo de vida útil também está ligado aos contratos previstos pela Lei de Licitações. Para ela, é necessário vincular as empresas que fazem os projetos à construção e à manutenção das vias. Nesse sentido, ela defende que os contratos de manutenção deveriam ter prazos mais longos — hoje eles duram cinco anos, enquanto o tempo de vida útil da estrada está previsto para chegar a uma década.
 
“Os critérios de pagamento deveriam ser revistos”, defende Liliane. Atualmente paga-se, por exemplo, o serviço de recuperação pelo total de buracos tapados. O ideal seria avaliar o nível de qualidade da estrada. O processo de contratação das empresas de manutenção seria semelhante aos de concessões. Pesquisa CNT divulgada em 2011 sobre a qualidade das vias aponta a erosão como o problema mais comum, seguido por buracos de grandes proporções, barreiras que interrompem o trânsito, e pontes destruídas. O total de rodovias federais, pela pesquisa CNT, e estaduais em condições precárias chega a 14%, sendo 11,2% ruins e 2,8% péssimas.
 
Não utilização de recursos arrecadados pela Cide prejudica a conservação – A realidade brasileira da falta de recursos para a manutenção das rodovias seria completamente diferente se os recursos arrecadados pela Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) tivessem sido de fato aplicados nas estradas, conforme determina a lei que criou a taxa. O professor Creso de Franco Peixoto, do Centro Universitário da Fundação Educacional Inaciana (FEI), de São Bernardo do Campo, critica o descaso com a lei. “Desde que foi criada (em dezembro de 2001) a Cide já coletou R$ 80 bilhões, mas apenas 25% desse total foram efetivamente pagos para obras nos 67 mil quilômetros das rodovias federais no País.”
 
Como os recursos disponíveis sem a Cide são poucos, observa Peixoto, dificilmente os responsáveis pelas estradas brasileiras conseguem ter uma estratégia eficiente de gestão de pavimento, o que encurta a vida útil das rodovias. Do que é arrecadado pela Cide, 71% são da União e 29% dos estados e municípios. Assim, quando uma rodovia chega a um terço de sua vida útil, que varia de 10 a 15 anos, há a perda de cerca de 10% de sua estrutura.
 
Nessa fase, explica Peixoto, o trabalho de reabilitação é mais fácil, mais viável e mais barato. Mas como os governos federal, estaduais e municipais não têm recursos, as estradas acabam ficando sem a devida manutenção. “A gestão não consegue usar técnicas de gerência de pavimentação porque os recursos são parcos, insuficientes para garantir o bom rodar nas estradas do Brasil inteiro. Daí a tendência de deixar a manutenção para longos períodos de tempo. E remediar a situação com operações tapa-buraco”, explica.
 
De outro lado, lembra Peixoto, as rodovias concessionadas, principalmente em São Paulo, tiveram os pedágios corrigidos de 20 anos, como previam os contratos iniciais, para mais de 28 anos. Esse período, na avaliação do especialista, é “muito longo” porque os pedágios são corrigidos pelo IGP-M e acabam com preços muito altos. “Faltam recursos para as rodovias públicas, mas a taxa da Cide não é repassada para seu devido fim. E as rodovias concessionadas têm pedágios cada vez mais caros. Essa disparidade interfere diretamente na superfície rodante”, explica.
 
Desde 2007, o governo paulista gastou R$ 207,4 milhões em obras concluídas ou em andamento. Até 2015, a previsão é investir R$ 1,55 bilhão nas rodovias SP-250, SP-99 e SP-215, de acordo com o Plano Plurianual (PPA) de obras do estado. As três estradas apresentam “estado geral ruim”, na avaliação do relatório da Confederação Nacional dos Transportes (CNT) e, por isso, terão prioridade.
 
Obra para a Copa apresentou problemas três meses após inauguração – Festejada como a primeira obra de infraestrutura para a Copa do Mundo de 2014, a duplicação de 17 quilômetros de rodovia entre Cuiabá e Chapada dos Guimarães transformou-se em um desgaste para o governo de Mato Grosso. Liberada para o tráfego em fevereiro de 2011, a estrada começou a apresentar trechos esburacados menos de três meses depois. Os problemas chamaram a atenção do Ministério Público Estadual, que abriu um procedimento investigatório.
 
O inquérito só não resultou em uma ação judicial porque a empresa responsável pela obra se antecipou e fez os reparos, após a repercussão na imprensa. Em vários trechos, o asfalto praticamente se desfez. Em outros, técnicos constataram a total ausência de drenagem. Uma rotatória precisou ser refeita porque era impossível para um ônibus, por exemplo, contorná-la sem subir no canteiro. “O problema desta obra vem lá do início, do nascedouro”, diz o promotor de Justiça Mauro Zaque.
 
Um dos motivos, segundo Zaque, foi o fato de o governo ter licitado a duplicação prevendo a mistura asfáltica chamada tratamento superficial duplo (TSD), um material de custo mais baixo. Também não havia drenagem e o pavimento era de baixa qualidade. “A maioria dos problemas foi resolvida depois de nossa intervenção”, afirma Zaque.
 
O governo de Mato Grosso afirma que a obra ainda não foi oficialmente entregue pela empreiteira, apesar de já estar liberada para o tráfego. E que só irá avaliar suas condições após recebê-la. O governo entende que o TSD é capaz de suportar o tráfego e as altas temperaturas do estado.
 
As falhas da duplicação são apenas um caso de mau uso dos recursos públicos na construção e reforma de estradas. Uma vistoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE) encontrou defeitos em todas as 27 obras de pavimentação de rodovias que tiveram trechos executados entre 2006 e 2008. Em 731,9 quilômetros, os técnicos verificaram 3.979 ocorrências de defeitos que não deveriam existir em obras tão recentes. Cerca de 1,2 mil ocorrências eram relativas a defeitos no revestimento da pista. Outras 1,1 mil consistiam nas chamadas “panelas” (buracos no jargão técnico). Levando-se em conta os preços atuais, o dinheiro empregado nestas rodovias totaliza mais de R$ 500 milhões.
 
12/4/2012