BR-319, a rodovia fantasma da Amazônia

Com um candieiro na mão, João Joventino Cordeiro aparece na beira da estrada. É noite na Amazônia. Outra vez, faltou luz na região e não há previsão de quando ela voltará. A trilha da BR-319 é um breu só. Joventino abre as portas de sua casa de madeira para abrigar a reportagem do Valor. Cobra R$ 10 pela diária. O banho é no rio. Isolado na floresta, ele está feliz em receber os hóspedes. "Não é toda hora que alguém aparece por essas bandas", diz. Num passado remoto, a situação já foi bem diferente, uma época em que a BR-319 ainda não alimentava a fama de rodovia fantasma.

Concluída em 1973, a BR-319 rasgou o coração da Amazônia há 40 anos com o propósito de ligar as cidades de Manaus (AM) e Porto Velho (RO) e, dessa forma, acabar com o isolamento rodoviário do Estado do Amazonas. Nos primeiros anos de operação, foi plenamente transitável. Carros de passeio cruzavam seus 877 quilômetros em viagens de 10h, 12h. Havia linhas regulares de ônibus que operavam entre as capitais do Amazonas e Rondônia. Durou pouco. Nos anos seguintes, a rodovia entrou em um processo sem volta de decomposição total. Em 1988, 15 anos depois de concluída, já era considerada intransitável.

Hoje, a BR-319 expõe a dificuldade que o país tem enfrentado para colocar em prática um plano efetivo de desenvolvimento sustentável, expressão usada para carimbar qualquer projeto que se assente sobre a Amazônia, mas que, no caso da BR-319, não se converteu em resultado efetivo. O futuro dessa rodovia – e, consequentemente, de boa parte da Amazônia – está em xeque, e por isso se transformou em motivo de discórdia e indignação.

Para cerca de 500 mil pessoas que vivem nos 14 municípios localizados na área de influência da BR-319, e também para empresários, políticos e a população de Porto Velho e Manaus, que somam mais 2,5 milhões de pessoas, o que está em discussão é uma dívida social e o direito de ir e vir. Hoje, só é possível sair de Manaus por barco ou avião, uma limitação logística que também afeta o Estado de Roraima, que só tem estrada (BR-174) para chegar até a capital do Amazonas.
Ambientalistas, no entanto, afirmam que o plano de repavimentação é um erro que precisa ser definitivamente enterrado. Com o passar dos anos, a estrada teria perdido completamente sua razão de existir e, portanto, deve ser engolida de vez pela floresta.

Para checar a real situação da rodovia, a reportagem do Valor cruzou toda a extensão da BR-319. Foram três dias de viagem, em uma picape, para percorrer todo o traçado. Nos primeiros 200 km, a partir de Porto Velho, não há complicações. O asfalto está bem conservado. Chega-se com tranquilidade até Humaitá, cidade de 50 mil habitantes, já no Amazonas. No outro extremo da rodovia, nas proximidades de Manaus, cerca de 250 km de estrada também seguem em boas condições até alcançar a capital, no ponto de encontro dos rios Negro e Solimões, que formam o Amazonas. A complicação está no miolo da estrada.

Sem qualquer manutenção, o trecho central da rodovia, um traçado de 405 km, foi totalmente invadido pela mata. O clima úmido e as chuvas ajudaram a transformar a camada fina do asfalto em um farelo escuro e pedras que se misturaram ao barro. Crateras surgiram por todos os lados, pontes apodreceram. De rodovia federal, a BR-319 se converteu em rota proibida, destino procurado apenas por alguns poucos jipeiros e motoqueiros dispostos a se arriscar no meio da mata.

"Já tivemos uma rodovia. Hoje o que existe é uma lacuna entre as cidades e a população. Não temos sequer uma linha de ônibus. Prometeram que a estrada seria reconstruída até a Copa. Nada aconteceu", afirma Sávio Barbosa, secretário- executivo de Humaitá.

Toda discussão em torno da repavimentação da estrada passa pelo risco de expansão do desmatamento, além de uma possível imigração descontrolada para a Amazônia Central. O efeito imediato do retorno do asfalto, diz o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Philip Fearnside, especialista na região, seria o avanço da grilagem de terras e a devastação da mata. O histórico de outras rodovias, afirma ele, já ensinou essa lição.

"É o que acontece sempre. Foi o que vimos, por exemplo, em boa parte do trecho asfaltado da BR-163, no Mato Grosso", diz Fearnside. A Cuiabá-Santarém, como é conhecida a BR-163, foi o que ajudou a deflagrar um processo conhecido como "espinha de peixe", no qual a estrada serve de via principal para abertura de uma sequência de picadas mata adentro, para extração ilegal de madeira.

O governo afirma que o efeito da pavimentação seria exatamente o oposto, porque permitiria a ação mais efetiva da fiscalização em toda a rodovia, inibindo a ação de madeireiros e ocupações irregulares. O renascimento da estrada permitiria ainda minimizar passivos ambientais que foram causados durante sua construção, entre 1968 e 1973. "São teorias que não se sustentam", diz Fearnside.

A estrada que hoje não passa de uma cicatriz no meio da Amazônia já ostentou a imagem de ícone de desenvolvimento, no período do governo militar conhecido como "milagre econômico". Sua história cruza com as de outras rodovias que se espalharam pela região Norte. No início da década de 70, nascia a Transamazônica (BR-230) para cortar a Amazônia de leste a oeste e chegar ao litoral do país. A partir do Mato Grosso, avançava rumo ao Norte a rodovia Cuiabá-Santarém, alcançando o Pará. Um tratamento especial, no entanto, estava reservado para BR-319.

O plano dos militares previa que todas as rodovias abertas na região seriam inicialmente construídas apenas como estradas de terra. Deveriam permanecer assim durante anos, até que o crescimento do tráfego viesse a justificar a necessidade da pavimentação. Decidiu-se, porém, que na BR- 319 seria diferente. A estrada não precisaria esperar tanto. Imediatamente após a abertura na mata, preparava-se o trecho e lançava-se o asfalto. A obstinação em pavimentar a rodovia era tanta que, para que as obras não parassem em nenhum momento, seguindo adiante mesmo durante a estação chuvosa, foram usadas lonas de plástico para proteger o asfalto ainda fresco.

Tanta determinação em entregar a estrada pavimentada se prestava como um tipo de compensação ao Estado do Amazonas, por conta de outros investimentos pesados que os militares já tinham destinado ao Estado vizinho. O Pará, além de ser dono do maior trecho da Transamazônica e de seus projetos de colonização, ganhava uma linha direta com o Mato Grosso, com a abertura da BR-163.

Belém também havia ficado com a sede da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), atraindo projetos pecuários para a região. A pavimentação da BR-319, portanto, foi defendida como peça fundamental para Manaus, que também passaria a sediar a Zona Franca. Hoje, tudo o que é produzido na Zona Franca é escoado por via aérea ou pelo rio Amazonas, até chegar a Belém. A partir dali, segue de caminhão pelas rodovias do país.

Em Manaus, na plataforma da balsa que faz a travessia dos rios Negro e Solimões, início da BR-319, uma faixa foi pendurada para registrar o protesto contra o isolamento rodoviário da região. "Chega de ficarmos restritos ao nosso Estado. Queremos ganhar o resto do país. BR-319 já".

Em sua casa na beira da rodovia, em Manicoré, João Joventino diz que já não aguarda mais o retorno da pavimentação. "O povo daqui foi esquecido, vai morrer esperando esse asfalto", diz. "A gente vai virando fantasma também."