O alcance do novo regime automotivo

A exigência de aumentar em 12% a eficiência dos motores de automóveis, até 2017, foi recebida com relativa tranquilidade pelas empresas do setor; e é uma medida na direção certa, a de cobrar das montadoras e revendedores investimentos para aproximar a qualidade dos carros vendidos no país ao padrão dos mercados desenvolvidos. O otimismo que temperou as declarações de ministros no anúncio do novo regime automotivo não afasta, porém, algumas dúvidas sobre o alcance do programa, batizado como Inovar Auto.
 
Segundo um alto executivo de montadora com tradição no mercado brasileiro, está claro para as empresas que a cobrança por menor consumo e emissões de CO2 não sairá de cena; provavelmente, mesmo após 2017, quem não se esforçar para atender às exigências do governo vai encarar algum aumento de imposto. O esforço para atrelar ao novo regime incentivos à melhoria dos automóveis vendidos no país é um avanço digno de inspirar os futuros programas em outros setores.
 
Duvidoso é que, como previram os ministros, as empresas invistam pesado para ir além dos índices mínimos e busquem a meta de 18% de aumento da eficiência dos motores, em troca do incentivo de dois pontos percentuais a menos no IPI. Mais incerto ainda é o sonho das autoridades de ver a redução do IPI repassada aos preços dos automóveis nas revendedoras.
 
É incerta a promessa de repassar queda do IPI ao varejo
 
O governo confia que os prometidos US$ 22 bilhões em investimentos privados no setor aumentarão a competição entre as empresas e forçarão para baixo o preço dos automóveis. Não é o que se vê nos novos lançamentos de carros populares, que chegam ao mercado com preços em torno de US$ 12 mil, valor de um carro médio no exterior. O mais provável é que as empresas usem a vantagem tributária para compensar os maiores custos gerados com as novas regras.
 
Que há um viés protecionista na medida não há dúvida: a ideia, proclamada pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, é aumentar a geração de empregos no país; o ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, comentou que gostaria de ver o Brasil sair do sétimo para o quarto lugar no ranking dos grandes produtores de automóveis, posição que ocupa como mercado para o setor automobilístico, só atrás dos EUA, Japão e China.
 
Houve um esforço de inteligência para desenhar um programa capaz de passar pelo crivo liberal da Organização Mundial do Comércio. Mas nem o mais sofisticado dos regimes ganharia facilmente sinal verde na OMC mantendo, como esse mantém, uma tributação interna diferenciada para carros com maior ou menor conteúdo de peças nacionais.
 
O aumento de 30 pontos percentuais do IPI para carros importados, estabelecido em 2011 para durar um ano, foi prorrogado, com as sofisticações do Inovar Auto, até 2017. Os fabricantes e revendedores podem reduzir e até eliminar o imposto a pagar, descontando dele o valor gasto com peças e partes compradas no Brasil e sócios do Mercosul. É uma prática comum no mundo o incentivo ao conteúdo nacional, ou regional; mas é pecado condenável, no sistema mundial de comércio, diferenciar, na tributação interna, entre produtos nacionais e os que vêm de fora. Pelo consenso na OMC, uma vez pago o imposto de importação, todos devem ser iguais perante a lei; não cabe discriminação entre local e estrangeiro.
 
O governo tem técnicos inteligentes e experientes; sabem que essa discriminação é problemática. Mas também sabem que, mais importante que a criatividade na cobrança do IPI, o trunfo do Brasil, nas futuras brigas no sistema multilateral de comércio, será o empenho já feito em aplacar as empresas que poderiam cobrar de seus governos um caso contra o Inovar Auto na OMC. Praticamente todos os grandes atores no mercado ganharam algum agrado; até fabricantes de carros de luxo receberam cotas para acomodar vendas. Essas cotas, por exemplo, talvez, acalmem os ingleses, que andaram perdendo a fleugma por causa do IPI mais alto.
 
Haverá discursos e broncas em Genebra; afinal está em jogo uma questão de princípio. O governo brasileiro conta com as empresas com quem negociou o novo regime – sobretudo americanas, europeias, coreanas e japonesas – para bloquear qualquer tentativa mais exaltada de levar o Brasil a julgamento na OMC. Houve um esforço legítimo para vestir o novo regime com o figurino da modernização e incorporação de tecnologia. O esforço já constava das versões iniciais do Inovar Auto, em abril, e antecedeu em meses as últimas queixas das delegações em Genebra contra o protecionismo brasileiro.
 
O que veio após as manifestações de Genebra foi a definição das cotas para importação sem IPI adicional, concedidas até a montadoras sem intenção de abrir fábricas no Brasil. Na avaliação da equipe econômica, essas concessões mostram a intenção brasileira de evitar prejudicados, enquanto o país tenta extrair benefícios de uma de suas indústrias mais dinâmicas, com elos na cadeia de produção que incluem desde as indústrias de aço, vidro e plásticos à eletrônica mais sofisticada.
 
"O governo já adotou a linguagem para a defesa na OMC: estímulo à inovação e defesa do meio ambiente são exceções aceitas nas regras de liberalização do comércio", analisa o consultor e ex-secretário de Comércio Exterior Welber Barral.
 
O fato é que o governo assistia com pavor estímulos ao consumo interno vazarem fronteiras. Até estimularam a criação de empregos, mas no México, na China, na Alemanha. A exigência de maior conteúdo nacional se opõe ao aumento de quase 5% na importação de peças e partes automotivas, entre janeiro e agosto: nesse período, a importação desses produtos, vindos da Coreia, cresceu 77%; a originada no México, 60%; do Japão, 15%; e do Chile, 12%, França, 3%. A Alemanha reduziu em 17% as vendas de partes e peças, mas aumentou em 33% as vendas de partes de motores.
 
Esse é outro desafio imposto às montadoras: encontrar alternativas no Mercosul aos fornecedores mais baratos de outros países.