Cerco aos caminhoneiros

O transporte rodoviário de cargas no Brasil abriga há décadas um personagem que pode estar com os dias contados: o caminhoneiro autônomo. O cerco a esse profissional, responsável por 60% dos volumes escoados pelas rodovias, começou há pouco mais de um ano, com o cadastro de caminhões e a crescente repressão ao uso de drogas estimulantes (rebites). Tais ações ganharam o reforço de leis duras, que disciplinam, respectivamente, jornadas ao volante e relação entre transportadoras e autônomos.

Essas mudanças vêm acelerando a exclusão de 600 mil trabalhadores de um mercado que movimenta R$ 140 bilhões por ano, favorecendo as empresas do ramo. Os motoristas independentes, na maioria homens na faixa dos 40, mostram disposição em resistir às pressões que vêm encarecendo custos de sua atividade e derrubando seus ganhos, em torno de R$ 2 mil mensais. Mas os que dependem de cargas avulsas e carros de terceiros admitem integrar um grupo condenado ao acostamento da história.

“Carregamos o país nas costas. De um jeito ou de outro, toda mercadoria passeia numa carreta”, filosofa o goiano Manuel Araújo, 56, que há seis trocou o caminhão próprio pelo emprego de motorista de um grande grupo transportador. Com 30 anos na profissão também seguida pelos dois filhos, ele considera insustentável o valor dos fretes oferecidos aos autônomos, que não passa de R$ 1,7 mil no trajeto entre o Distrito Federal e as capitais paulista e fluminense.

Especialistas e empresários ouvidos pelo Correio consideram históricas as medidas para formalizar condutores de mercadorias. Para eles, elas chegaram em boa hora, pois ajudam o país, dono de limitada e deteriorada malha rodoviária, a adiar o tantas vezes previsto colapso logístico. Além disso, os informais, como reflexo vivo e também agravante da precariedade da infraestrutura de transportes de cargas — rodovias, ferrovias, aeroportos e portos —, representam atraso tecnológico, ameaças à segurança dos usuários de estradas e práticas desleais de mercado.

“Essa é uma das faces mais evidentes do Custo Brasil, que tira competitividade no mercado global”, ressalta Bernardo Figueiredo, ex-presidente da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Ele explica que, para escapar das tabelas do frete formal e da escassez de opções logísticas, muitos donos de cargas são tolerantes com a informalidade. Dos estimados 2 milhões de caminhoneiros em atividade, 30% não existem para estatísticas e livros contábeis e ainda pilotam a parte mais decadente da frota nacional, com idade média de 19 anos.

Sem a organização das grandes transportadoras, também não têm acesso a qualificação, a crédito subsidiado para trocar o veículo e ainda desempenham exaustivas jornadas de trabalho, de até 20 horas seguidas. Há seis décadas, o Brasil tem nas rodovias o principal meio para mover bens. São 1,7 milhão de caminhões, segundo o Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas (RNTRC), controlado pela ANTT. Esse cadastro, concluído em janeiro de 2011, foi o primeiro passo de formalização do setor com a adesão obrigatória de todos os veículos de carga nas estradas.

Além do RNTRC, a arrumação do setor ganhou importante impulso com a obrigatoriedade do uso do Pagamento Eletrônico de Frete (PEF), cartão magnético controlado pela agência reguladora e que praticamente acabou com a carta-frete, documento que a transportadora emite para o caminhoneiro autônomo como forma de adiantamento. Esse meio tradicional para receber dinheiro e abastecer caminhão dava margem a desvios e especulações.

A advogada trabalhista Clarisse Dinelly avalia que a lei que regulamentou a profissão dos motoristas (nº 12.619/12), em vigor há um mês, também terá impacto positivo sobre as condições de trabalho desses profissionais. A necessidade de realizar intervalos de meia hora a cada período de quatro horas de rodagem, além de descanso de 11 horas após outras 24 de trabalho, forçará a contratação de mais motoristas para manter prazos de entrega. A jornada excessiva dos motoristas profissionais sempre foi fator de acidentes fatais e a lei eleva a segurança nas estradas. “Falta só melhorar os locais nas margens das rodovias para os motoristas estacionarem e descansarem”, sublinha ela, que também prevê aumento de custo para empresários, com reflexo sobre fretes.
 
Acidentes

O gerente de regulação do transporte rodoviário da ANTT, Wilbert Junquilho, acredita que a tendência é de o frete atingir valor de equilíbrio graças ao fim da concorrência predatória. “Os canais mais formais também ajudam a capacitar e a inibir a figura do clandestino”, acrescenta. Segundo estimativas do setor, caso forem cumpridas à risca, as novas normas do código de trânsito voltada para caminhoneiros e a regulamentação da carreira podem encarecer o frete em até 30%, mas também reduzir em 40% o número de acidentes com caminhões.

Para completa padronização do setor só falta normatizar a idade máxima para os caminhões, reduzindo o sucateamento. “O Brasil acaba incentivando carros velhos a rodar nas estradas, com até 50 anos, quando cobra menos dos com mais tempo de uso”, diz Flávio Benatti, presidente da NTC&Logística, entidade que representa as empresas de transporte de carga e logística em todo o Brasil. De toda forma, ele acha que o transporte rodoviário “virou uma página e iniciou um caminho sem volta de reorganização e moralidade ao mercado”. O empresário frisa que todos os envolvidos no transporte de cargas passaram a ser responsáveis pela segurança e pela gestão do tempo das viagens.
 
 15/7/2012